Cartas da Oficina: 18
O burrinho da impaciência
Luiz Carreira
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“Patience - is the Smile’s exertion
Through the quivering”
Emily Dickinson
( “Paciência - é o Sorriso do esforço
Através do tremor” )
Eu estava ontem escrevendo uma destas Cartas da Oficina, e nela falava sobre a paciência. Mais especificamente, sobre como a paciência é um ingrediente fundamental na receita da criação, ou melhor, do processo criativo. Um ingrediente que deve ser combinado com a paixão.
Razão e emoção, paciência e paixão, são pares complementares.
Essa carta começava assim: A paixão é um ingrediente fundamental do ato criativo. Fundamental e perigoso.
A paixão, você sabe, não é um mar de rosas. Na verdade, como disse Platão, no Fedro, é mais parecida com um cavalo.
Intensa, violenta, incontrolável, é um motor poderoso.
Tensa, atormentada, confusa, é, também, sofrimento perigoso.
O artista é conduzido ou conduz esse animal? Na parábola platônica, que não fala exatamente dos artistas, mas da vida humana, as rédeas têm que estar nas mãos da razão, e isso faz sentido. A razão (que não é a lógica) é a alma do negócio, mas não é o negócio todo. No Íon, outro diálogo platônico, Sócrates fala do poeta como um possesso. Na verdade, não é exatamente o poeta, mas o rapsodo que depende dessa espécie de possessão para fazer a sua arte. O rapsodo é aquele que recita, declama, o poema de outro. Ele é mais parecido com um ator e a sua arte, mais próxima à performance do que à composição.
Estou citando essas referências apenas para lembrar que esse é um tema antigo. Tanto na vida humana como na arte, qual será o equilíbrio entre a paixão e a razão? Vou investigar isso com mais detalhes, mas o que quero marcar aqui é que só a paixão não é suficiente.
Bem, eu ia por aí, queria falar sobre a paciência no processo criativo e na busca da excelência. Mas eu escrevia esse texto num domingo, no Domingo de Ramos, que é o dia que começa a narrar a Paixão de Nosso Senhor, lembrando sua entrada em Jerusalém montado num burrinho, e, então, me lembrei de uma pequena fábula que eu havia escrito inspirada nesse episódio. Ela tem a ver com a paciência e com a compreensão de quem somos e do que devemos carregar. Assim, antes de publicar o texto, puxei a rédea da escrita em outro sentido, comecei a escrever este aqui que você está lendo agora e que traz, ao final, aquela fábula.
Como bem disse A.D. Sertillanges, “o gênio é uma longa paciência”. Saber quem somos, o que devemos fazer, saber uma coisa de verdade, e saber fazer algo bom com excelência, ainda que nos peça paixão, ímpeto, força, exige, também, paciência, porque a expertise e a excelência são frutos maduros. Como diz o ditado popular, “o apressado come cru”. E come mal, mastiga mal, digere mal. E o cozinheiro apressado, afobado, é um mau cozinheiro.
A relação entre razão e emoção é mais complexa do que apenas um domínio moralista das funções cerebrais sobre o afetado coração. Pesquisas recentes da neurociência descobriram o que a arte e as melhores tradições religiosas do Ocidente e do Oriente já sabem há muito tempo, que cérebro e coração se comunicam numa mesma dinâmica de percepção da realidade, e que o coração não é passivo nessa relação, que ele informa e influencia o cérebro, a ponto de poder silenciá-lo, diminuindo sua agitação e qualificando nossa atenção. A meditação e a oração, usando a ferramenta da respiração, alteram o ritmo cardíaco, e este regula os impulsos elétricos do cérebro.
Quando falo no processo criativo e na busca da excelência, não penso em normas ou numa lista de regras, mas no que funciona. E, pode ter certeza, sem uma dose de razão e, sobretudo, de paciência, nada disso funciona, você só se desgasta ou se torna afetado.
Embora a palavra paciência às vezes sugira apenas a ideia de passividade, ela carrega, também, outro significado mais bonito: uma atitude confiante. Sim, a paciência é saber esperar. Contra a ansiedade da expectativa, a paciência confia e tem a ver com a esperança. Isso está no coração do processo criativo: não contar só com o que pode acontecer, mas entender que o que está acontecendo já faz sentido, e confiar no processo, não só desejar o resultado.
Curiosamente, a palavra paciência, assim como a palavra paixão, tem um sentido de saber suportar, carregar.
O padre Antônio Vieira, num dos seu belos sermões, faz uma espécie de anatomia da esperança e diz que “a esperança é um composto de desejo e confiança: com a vontade deseja, e com entendimento confia; se desejara sem confiança de alcançar, seria somente desejo; mas como deseja e confia juntamente, por isso é esperança”.
O desejo sem a sabedoria de esperar e suportar a carga do caminho, é uma ilusão e uma fonte de ansiedade e frustração. Sé para dar um exemplo bem simples e mostrar que não estou falando em abstrato sobre regras bonitinhas: eu desejo tocar violão muito bem, mas não quero machucar meus dedos nas cordas nem quero fazer os exercícios e não aguento esperar os resultados que só podem vir daqui, sei lá, um ano de prática constante. Bem, se for assim, na verdade, eu estou mentindo para mim mesmo quando digo que quero tocar violão muito bem, entende?
Para concluir, eis o texto que eu queria compartilhar contigo. A minha pequena fábula sobre o burrinho de carga.
Este texto é parte de um livro que venho escrevendo, aos poucos, com fábulas e formas narrativas curtas semelhantes a fábulas. Não sei ainda se é um livro infantil. Suspeito que não, que não seja só livro infantil. O título provisório desse livro é Oito figos e um fabuloscópio. Na verdade, em alguns textos há malícia (narrativa, digo) demais para ser infantil. Não vou explicar esse título agora, sobretudo os oito figos, mas acho que dá para entender o fabuloscópio como instrumento de inspeção da realidade por meio da fantasia ficcional.
Eis o texto. Boa leitura!
O que você carrega?
Um burrinho se lamentava, mastigando palavras incompreensíveis.
Um burro velho chegou perto dele e perguntou:
– O que foi, burrinho? Está chateado?
– Estou triste. Olha só, olha ali do outro lado, olha aqueles cavalos, como são bonitos.
O burro velho olhou e viu como eram mesmo bonitos os cavalos.
– Mas por que a beleza dos cavalos te deixa triste?, perguntou o velho ao burrinho novo.
– Porque é deles, e não minha. Eu sou feio, e sou um burro. Eles fazem coisas importantes, levam os donos em passeios, em corridas, e nós, fazemos o quê? Levamos carga, só isso.
O burro velho parou para pensar, e viu que era verdade. Mas, como queria consolar o burrinho novo, disse:
– Vai ver eles não sabem levar carga. E levar carga é uma coisa importante.
O burrinho novo olhou para ele, e disse:
– Não vem com essa! Você acredita mesmo nisso?
O burro velho pensou consigo mesmo: “Acho que sim, acho que eu acredito…”. Mas não sabia argumentar. Ele era bom de carga, bom de coração, mas não era bom com as palavras. Foi saindo, deixando o burrinho ali com a sua tristeza justificada, quando se lembrou de uma coisa, que não sabia se era um argumento, mas sabia que era verdade. Voltou e disse, todo entusiasmado, ao burrinho:
– Olha, mas tem o seguinte: Jesus, quando entrou em Jerusalém, não foi a cavalo, Ele foi montado num burrinho como nós.
Dessa vez o burrinho olhou para o burro velho com um olhar diferente, que já não era aquele triste do começo da história.
Ótima reflexão!
Gostei da pequena fábula ❤️