Fazer-se fazendo
Cartas da Oficina: 6
Fazer-se fazendo
Luiz Carreira
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Será que eu tenho talento?
Eis uma pergunta inútil, simplesmente inútil.
Quer dizer, talvez tenha sim uma utilidade. Talvez ela sirva bem como instrumento para nos afastar das nossas potencialidades, das nossas possibilidades de fazer algo bom. Na verdade, é melhor eu ir direto ao ponto: talvez esse tipo de pergunta seja muito boa para prorrogar a nossa realização e a possível felicidade.
Esse tipo de pergunta serve muito para quem quer ficar lambendo as suas feridas de estimação. Sabe por quê? Por ela falsifica os problemas num problema sem solução. Você fica ali se perguntando uma coisa que nunca terá resposta fora da experiência e perde tempo de experimentar problemas e respostas reais.
Eu já sofri muito com essa pergunta e posso dizer de cadeira que ela é um jeito triste de se proteger do que você acha que é só um perigo, mas é um ingrediente da sua felicidade. Um jeito de se esconder de si mesmo.
Você nunca vai chegar a uma resposta sobre o seu talento ou, sei lá, a sua vocação, sem correr todos os riscos da prática.
Fazer esse tipo de pergunta é como ficar olhando uma festa de longe, de fora, doidinho pra ir lá, dançar, participar. Pode ser que você não seja um bom dançarino, mas se você tiver a coragem de descobrir isso na real, na prática, tentando, certamente há de descobrir tantas outras coisas, que junto com a decepção de não ter aquele talento, vai descobrir outro caminho, outras possibilidades. Se ficar lá de longe, especulando sem tentar, ficará sem uma coisa nem outra. Quer dizer, vai ficar com o presente indigesto da frustração e do cagaço.
É completamente sem sentido perder tempo com essa pergunta como se você fosse encontrar uma resposta segura que te impedisse de se frustrar, de se decepcionar, de errar.
Será que eu tenho talento? Só vou tentar se seu tiver talento.
Sendo direto, isso é uma covardia muito perigosa consigo mesmo.
Costumo dizer o seguinte: talento que não se tem, se cria.
Bem, vamos lá!
Mesmo que você pegue como exemplo o esporte, onde o assunto muda um pouco, você vai ver que há muitas formas de compreender o talento. Claro que tem gente com aptidão natural para fazer isso ou aquilo melhor do que os outros, com mais força ou velocidade, e mais inteligência de tempo e espaço. Aquele menino ali joga melhor do que todo mundo, só pelo jeito de andar eu já vejo, ele nasceu pra isso!
É, pode ser. E daí?
Só ele pode ser jogador de futebol? E, mais: será que esse talento dele vai garantir sozinho o seu sucesso?
Saindo dos esportes, eu sugiro que você considere pessoas excepcionais, as mais talentosas, as que atingiram a excelência em qualquer área, escolha aí à vontade qualquer pessoa que você admira, e diga: quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Explico: foi o seu talento natural que gerou todas as suas realizações ou foi a sua capacidade de trabalho, a sua atenção, o seu comprometimento, a sua vontade, a sua força, a sua mínima crença de que poderia dar certo, a sua persistência, que formaram o seu talento?
O ovo ou a galinha?
Você nunca vai saber a resposta ao certo porque todas as pessoas que atingiram a excelência, que realizaram coisas significativas, interessantes, que foram verdadeiramente criativas, todas elas são vistas assim por meio do que fizeram, não do que poderiam ter feito. "Fulano é muito talentoso, mas nunca fez nada". Mentira! Não é verdade porque o talento só pode ser percebido na ação.
Assim, o que é certo é que a ação é a única coisa certa entre todas as pessoas que realizaram coisas excelentes. Eles foram lá e tentaram fazer, e não uma única vez, mas constantemente, elas se envolveram de verdade, se comprometeram, correram riscos, erraram, aprenderam, sofreram mais ou menos, mas não ficaram só especulando se tinham ou não talento.
Na minha prática, e ao estudar processos criativos e o exemplo de diversos artistas (de diversas áreas: da literatura à pintura, da arquitetura ao empreendimento, da música à ciência), eu vi que, com certeza, o desejo desproporcional por segurança anda muito próximo da frustração completa, vi que muito melhor do que buscar segurança, é buscar força e coragem.
Não quero passar um centímetro sequer do meu assunto: não estou sugerindo nenhuma fórmula definitiva para felicidade humana ou, como diria aquele programa de TV, prometer que "seus problemas acabaram!". Nada disso! Meu assunto aqui é específico: para você fazer as coisas em busca de realização pessoal, para você destravar o seu potencial de criatividade, para de fato experimentar um processo criativo poderoso, bom, significativo, a força e a coragem são mais valiosas do que a segurança.
O desejo de segurança vai te dizer, por exemplo: "Deixe de ser ridículo!".
A força e a coragem vão te dizer: "Sem correr o risco de ser ridículo nunca vai ser bom! Se for ridículo, beleza!, a gente conserta e melhora na próxima. Cuidado para que a segurança não esmague o seu desejo."
Eu disse que não ia passar um centímetro sequer do meu assunto, mas avanço aqui um milímetro para deixar uma sugestão tomística muito bonita:
Tudo o que eu falei aqui nesta carta tem a ver com fazer as coisas. Mas, lembre-se, e eis aqui a sugestão tomística: ao fazer as coisas nós mesmos, o modo como fazemos e o que fazemos, nos faz a nós mesmos.
Belíssimo texto! Lembrou-me do seguinte trecho do Frankl "Precisávamos parar de perguntar qual era o sentido da vida e, em vez disso, pensar em nós mesmos como os que estavam sendo questionados - diariamente e a cada hora - pela vida. Nossa resposta deve consistir não em conversas e meditações, mas em ações e condutas corretas. Em última análise, a vida significa assumir a responsabilidade certa aos problemas e cumprir as tarefas que ela constantemente delega aos indivíduos".
Quão importante e necessário é ter a clareza da ação, principalmente no que tange talentos, propósito.
excelente! ótimo texto!