Carta a um arquiteto
Cartas da Oficina: 8
Carta para um arquiteto
Luiz Carreira
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Esta carta foi escrita originalmente para meu pai, mas ela sai da minha mesa atrasada.
Aos 94 anos, meu pai perdeu completamente a memória, ou, para dizer melhor, as memórias o perderam porque ele vale mais do que elas. Com demência vascular, assim é o nome dado pela medicina ao mundo no qual ele vive hoje, não se lembra de nada nem de ninguém, não consegue articular mais nenhuma palavra e ninguém sabe exatamente as que ainda pode entender.
Apesar disso, mantém seu olhar afetuoso para as pessoas e para os dias que devem passar muito mais lentos para ele. Está vivendo um crepúsculo sereno, sem dor, calmo, às vezes até sorridente e com expressões que me fazem, às vezes, acreditar que ele sabe quem eu sou.
Por isso, esta carta está atrasada para ele, embora nada do que eu vá escrever aqui já não lhe tenha dito quando nós conversávamos muito.
Minha intenção ao começar assim esta carta não é tornar nossa conversa sentimental apenas, mas nos lembrar, a nós que ainda nos lembramos, que os gestos mais personalizados se enraízam na nossa vida para além da ideia de exemplo. Não sei o que é, mas é mais do que exemplo.
Meu pai é, ou foi?, arquiteto, e cada vez mais penso em como vê-lo desenhar, em como frequentar seu escritório bagunçado, que chamávamos de bat-caverna, em como acompanhá-lo nos canteiros de obra que brotavam da sua prancheta, em como tudo isso, enfim, se incorporou na minha pessoa de modo mais profundo do que em formato de memória. Cada coisa dessas como que me talhou por dentro.
É bonito isso, porque nos permite ver que, apesar das fragmentações, às vezes angustiantes, da vida, apesar de todo o caos aparente, nós somos uma espécie de continuidade.
Mas esta carta também é para você, e, assim, não está atrasada.
Há pouco tempo escrevi um pequeno texto sobre a mesa de trabalho do meu pai. A sua mesa era diferente de todas as outras, diferente das mesas da escola, diferente da mesa de almoço e jantar, diferente das mesas das repartições, dos consultórios, dos restaurantes, era uma mesa inclinada, cheia de papéis rabiscados, canetas e lapiseiras, e de onde saia um braço articulado de luz. Parecia um bicho vivo, um ser com personalidade dentro do seu escritório esplendidamente bagunçado.
Depois, essa mesa ganhou nome: prancheta. Mas, na imaginação da criança, ela era algo além das mesas, uma coisa além das coisas, ela era um ser incorporado aos gestos do meu pai enquanto ele desenhava. Os dois pareciam dançar ou se amar. Ela, a prancheta, não era só um objeto, mas parte do mistério da criação.
Hoje eu sei que ali, em silêncio (nem sempre em silêncio), de lado, eu aprendia algo sobre esse mistério: o trabalho, o trabalho apaixonado, a presença desse outro ser, que é arquitetura, e tudo o que ela nos ensina a respeito da articulação entre sonho e construção. Aprendia também algo a respeito da articulação entre as artes, que cada vez entendo mais e melhor, mas que já estava ali na trama concreta da experiência pelo fato de meu pai desenhar e projetar ouvindo música, entre pinturas, fotos, gravuras e muitos livros como se todas essas linguagens conversassem com a linguagem da arquitetura.
Bebo dessa fonte cada vez mais.
No meu processo de escrita, escrevo alguns livros ao mesmo tempo até que um deles comece a ganhar uma forma tal, que me exige exclusividade. Daí eu saio do movimento horizontal e mergulho num único projeto para dar tudo de mim a ele num movimento vertical. Neste momento estou escrevendo como galinha, ciscando vários esboços. Daqui a pouco um deles amadurece e aí eu fico mais estranho do que normalmente sou até deixar o livro pronto para ser publicado.
Nesse terreiro onde cisco agora, há um livro com o título provisório de O Livro de Ana. São pequenos textos divididos em blocos temáticos, todos eles sobre um cômodo ou objetos da casa. Há um motivo ficcional para que se chame O Livro de Ana, mas não vou dizer isso agora.
Dentro desse livro em preparação, um dos blocos temáticos é A Mesa, com textos que se parecem com poemas, mas que chamo de textos para voz alta (que, de certo modo, é uma definição possível do poema). O objeto mesa, que tem várias funções, inclusive a de ser cama improvisada para amantes afoitos, também é, como disse Nelson Rodrigues a respeito da cama, um objeto metafísico.
A mesa do meu pai tinha essa metafísica, resgatando poeticamente objetos e gestos humanos do esquecimento ordinário do uso, ainda que desenhando coisas para serem usadas. O poeta Bruno Tolentino disse certa vez que a poesia é uma forma memorável de dizer as coisas. Apoiado naquela sua mesa, meu pai deve ter dito algo parecido a respeito da arquitetura, que era a sua forma memorável de dizer as coisas.
Antes de terminar esta carta, te deixo um texto daquele possível livro, que fala daquela mesa de arquiteto do meu pai, e fala desse esplendor simples das coisas rasgadas da grosseria do esquecimento e do utilitarismo.
A mesa do arquiteto
É diferente essa mesa do meu pai.
Mais alta, inclinada.
Não é para copos d’água.
Tem uma régua no meio, de fora a fora, que sobre e desce,
onde ele apoia a mão que desenha.
Ali ele esboça coisas,
imagina casas,
ideias de espaço
que ocuparão espaços no espaço
por um bom tempo,
entrelaçando histórias até virar ruínas,
que é outra forma de memória.
Enquanto ele desenha,
o seu espaço de tempo
altera a inocência dos relógios.
Na sutileza de lapiseiras invejáveis,
ele antecipa janelas e paredes,
portas e superfícies
já tão concretas no sonho dele
como serão em breve
na outra matéria
da realidade de outras pessoas.
A mão do arquiteto