Cartas da Oficina: 19
A graça de estar errado
Luiz Carreira
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Vou aproveitar o fato de estes textos se chamarem cartas, para fazer uma espécie de confissão pessoal.
Por que eu disse uma espécie de confissão? Porque não é daquelas que se fazem no confessionário. As confissões públicas são diferentes.
Hoje, 26 de abril de 2025, o Papa Francisco está sendo sepultado em Roma, na Basílica de Santa Maria Maggiore.
Junto com ele, confesso, daqui, à distância, enterro de vez, ou mais uma vez, o meu interesse em política. Eu não sei se a palavra interesse é a mais adequada. Talvez fosse melhor falar em vício, porque a política, mais do que gerar interesse, me corrompeu durante muitos anos por dentro como uma espécie de vício, de droga, entorpecendo minha atenção e dragando minhas energias. Nos últimos anos tenho tentado limpar meu espírito dessa porcaria da política, mas leva tempo, e é difícil.
O Papa Francisco, acusado de político e defendido como político, hoje me ajuda na nessa luta contra a política. Ele me estende agora, depois de morto, o lenço limpo da sua simplicidade, que é muito mais profunda do que a minha profundidade, para eu enxugar as minhas lágrimas arrependidas.
Eis a confissão: eu tinha certas reservas em relação ao Papa Francisco por motivos políticos, por achar que havia na sua atuação pública um certo viés ideológico. Como é bom achar uma coisa, não é? Ainda mais uma ideia, um juízo. A gente acha, e tudo parece resolvido.
Mas, voltando à frase que abre o parágrafo anterior, que vergonha! Que ridícula é a palavra “reservas” nesse contexto! Que arrogância ela carrega e que ignorância ela revela.
Quer dizer que um cristão mixuruca como eu “tinha reservas” em relação ao Papa? É mesmo cômico! E é estúpido porque as tais reservas brotavam como ervas daninhas do que eu via dele por notícia de quem o acusava e de quem o defendia, ou seja, de quem o usava. Formei minha opinião sem olhar direto para ele, sem assistir às suas homilias, sem ler seus documentos, sem me demorar em suas entrevistas, sem jamais acompanhar uma única missa sua.
Bem, aqui talvez você espere a virada do texto, o ponto em que eu digo que mudei de opinião.
Mas, não, eu não mudei de opinião, eu simplesmente joguei fora a minha opinião. E joguei-a na lata do lixo não reciclável.
A própria fissura em formar opinião é um sintoma da doença política. Em muitos casos não importa ter a opinião certa ou errada, porque o errado é ter opinião. E, como no caso do Papa Francisco, eu já errei muito assim.
Às vezes, uma verdade se revela depois de longo estudo, às vezes, num susto, como numa epifania, e, às vezes, ela se revela por insistência. A verdade da minha burrice tem sido assim, insistente. Eu sou lento, costumo me tocar de coisas óbvias depois de muito tempo que estão ao meu redor. Fazer o quê?
Com a morte do Papa Francisco, comecei a assistir a um turbilhão de vídeos, vendo-o falar muito esses dias. Há algo de significativo nisso: comecei a ouvir o Papa depois que ele morreu. E um dos aspectos da minha ignorância já se revela aí, nesse aparente acaso: um Papa não é escolhido para responder apenas à ordem do dia, a sua mensagem, diferente das do jornal, não é descartável, e fala além da morte.
Junto com esse turbilhão de vídeos de Francisco, o algoritmo começou a me entregar outros, com depoimentos sobre ele. No meio de muita coisa quase piegas de sentimentalismo, algumas pérolas. Dentre essas, uma senhora argentina, emocionada, na Praça de São Pedro, segurando uma sacolinha de plástico, lembrava de Francisco desde quando Bergoglio celebrava suas missas em Buenos Aires, que ela acompanhava com máxima atenção. No meio do seu depoimento emocionado, ela diz: “hablan mucho de su versión política, pero a mi no me importa nada, yo siempre oí lo que decía, y lo que él decía era de Dios”.
Vi e revi esse vídeo algumas vezes e, além das palavras dessa senhora, a sua face de alegria era muito diferente da minha, cheia de “reservas”. Não sei se exagero, mas eu vi uma poética nas palavras espontâneas dessa senhora. Enquanto todos falavam muito, ela ouvia o que Francisco dizia. Veja o peso dessas palavras à luz da expressão popular: “fala, fala e não diz nada”. Falar é mecânico, dizer é significativo. Ela se ligou ao que era dito, não à falação. Foi menos Marta agitada, e mais Maria, atenta “à parte mais importante”.
Minha doença política me fez uma desatenta Marta, confesso.
Confesso e repito: não se trata aqui de mudar de opinião.
Este texto não é exatamente sobre o Papa, mas sobre a minha estupidez de ter uma opinião sobre o que eu nem mesmo entendia, sobre meu coração surdo à voz que falava das coisas de Deus.
Em termos mais precisos, este texto é, como eu disse, sobre a minha arrogância e a minha ignorância, ou, em termos mais precisos ainda, sobre a minha esclerocardia, termo grego do Evangelho que significa dureza de coração. Dureza de coração que resulta de se aproximar das coisas de Deus sem fé, sem uma postura verdadeiramente atenta e humilde, cheio, por exemplo, de política e de opinião.
Você não precisa acreditar em Deus ou ser católico para entender como isso funciona. Aproximar-se da Beleza de modo desconfiado ou indiferente gera um coração duro. Aproximar-se da verdade de modo indiferente também gera um coração duro. Aproximar-se do sagrado, da beleza ou da verdade armado de política e opinião, sem humildade e a correta atenção, endurece o coração.
Um coração que se aproxima do que é mais importante com indiferença, endurece.
Um coração duro é um coração fechado, sem movimento, inflexível, empedernido, surdo.
O coração daquela senhora, aparentemente sozinha, emocionada, segurando sua sacolinha de plástico, era muito mais aberto do que o meu, muito mais inteligente do que o meu, que estava cheio de ideias.
Mas eu agradeço ao Papa Francisco e à senhora da sacolinha de plástico, que me ajudaram mais um pouquinho na minha batalha contra o vício da política.
A reabilitação de um drogado é um caminho longo, e começa pela confissão, começa por assumir a si mesmo que precisa de ajuda. O entorpecente da política é uma droga pesada.
Esta confissão que faço aqui não é, como eu disse, e repito de novo e de novo porque o nosso olhar viciado insiste em se desviar do que é mais importante, não é uma mudança de opinião, é uma libertação da opinião. É uma tentativa de recuperar um coração atento, movido pela graça de estar errado.
Olá, meu nome é Pedro, e eu sou cheio de opiniões, as opiniões quase destruíram a minha vida.
Dou-te os parabéns pelo discernimento; não sem uma pontinha(ona) de inveja, confesso.
Minha cabeça - que já percebeu a corretude da sua decisão - ainda não convenceu meu empedernido coração a abandonar minha velha opinião formada sobre tudo.
Abraço e que Deus te abençoe.